Bússola Estudantil

Jornal escolar da Escola Secundária de Loulé

“Será possível conhecer?” – O Paradoxo do Mentiroso e a sua Relevância na Lógica (I)

No âmbito do Clube de Filosofia e dos “Debates sobre Conhecimento, Ciência e Bem Comum”, no ano letivo 2022/2023, vários alunos, em particular os que mais se empenharam na organização dos mesmos, como o aluno Eleazar Pereira , dinamizaram um debate, que envolveu transversalmente toda a comunidade escolar, sob o tema “Será possível conhecer?”, a partir do seu ensaio filosófico “O Paradoxo do Mentiroso e a sua Relevância na Lógica” que publicamos em 3 partes.

Introdução

O paradoxo do mentiroso é um dos paradoxos mais antigos ainda em aberto. Uma possível versão do paradoxo é atribuída a Epiménides, uma figura semimística da Antiga Grécia e remonta ao século VI a.C. No entanto, começamos por apresentar uma das versões mais simples do paradoxo. Considere-se a seguinte proposição “P”:

 𝑃:𝑃 é 𝑢𝑚𝑎 𝑝𝑟𝑜𝑝𝑜𝑠𝑖çã𝑜 𝑓𝑎𝑙𝑠𝑎.

A questão que se coloca é se “P” é verdadeira. Se for o caso, então será falsa. E, sendo falsa, a sua negação, isto é, a proposição “¬P” cuja formulação é “P é uma proposição verdadeira” será verdadeira, pelo que “P” será verdadeira. Ambos os casos resultam em contradição.

Muitas pessoas, depois de cogitarem por breves instantes sobre o problema, dispõem-se a descartá-lo como irrelevante. De facto, o próprio sentido da proposição não é claro. Tal resulta, em parte, de ela se referir a si mesma. No entanto, é importante notar que contradições têm resultados catastróficos na maioria das linguagens lógicas, especialmente em lógica clássica. Tal deve-se ao Princípio de Explosão que estabelece que, a partir de uma contradição, é possível provar qualquer proposição, de forma completamente indiscriminada. Isso resulta numa linguagem lógica trivial, em que todas as proposições são igualmente verdadeiras e falsas, pelo que é fundamental evitar contradições.

De facto, muitos dos avanços em matemática ao longo do século XX prenderam-se com a necessidade de construir um sistema que permitisse provar os principais resultados de diferentes ramos da matemática, anulando completamente as contradições que se formaram nos séculos anteriores. Uma das tentativas de construção desse sistema foi a criação da Teoria dos Conjuntos por George Cantor. Para Cantor, um conjunto é uma coleção de objetos definitivos e distinguíveis entre si, da perceção ou do pensamento, e que pode ser considerada como um todo. A partir do trabalho de Cantor, muitos matemáticos procuraram criar um sistema sólido para unificar as várias áreas da matemática, entre os quais se destacam Bertrand Russel e Alfred Whitehead, mas rapidamente se depararam com algumas dificuldades. A forma como “conjunto” estava definida, permitia a criação de conjuntos que resultavam em contradições, do que é exemplo o célebre Paradoxo de Russel e que se apresenta a seguir:

𝑆𝑒𝑗𝑎 𝑅 𝑜 𝑐𝑜𝑛𝑗𝑢𝑛𝑡𝑜 𝑑𝑒 𝑡𝑜𝑑𝑜𝑠 𝑜𝑠 𝑐𝑜𝑛𝑗𝑢𝑛𝑡𝑜𝑠 𝑞𝑢𝑒 𝑛ã𝑜 𝑝𝑒𝑟𝑡𝑒𝑛𝑐𝑒𝑚 𝑎 𝑠𝑖 𝑚𝑒𝑠𝑚𝑜.

A questão que se coloca desta vez é se “R” pertence a si mesmo. Se for o caso, então “R” não pode pertencer a si mesmo, visto que não cumpre a condição para pertencer a si mesmo. Sendo assim, “R” não pertence a si mesmo. No entanto, agora, não pertencendo a si mesmo, “R” cumpre a condição para pertencer a si mesmo. Ambos os casos resultam em contradição.

A semelhança entre estes dois paradoxos é admirável. Ninguém suporia que um paradoxo aparentemente irrelevante poderia deixar-se entrever nos fundamentos basilares da matemática e comprometer a própria estrutura do seu edifício. Rapidamente os matemáticos se aperceberam de que, para evitar esses paradoxos, era necessário restringir a definição de “conjunto”, de modo a impedir a criação de conjuntos como “R”, anteriormente mencionado. Uma das formas mais simples de resolver o paradoxo seria, por exemplo, impedir um conjunto de pertencer a si mesmo.

De forma semelhante, alguns lógicos defendem que, para evitar o paradoxo do mentiroso é necessário restringir a definição de proposição. No entanto, como veremos mais adiante, essas soluções não são viáveis ou porque proíbem outras fórmulas consensualmente portadoras de sentido, ou porque não resolvem outras versões do paradoxo do mentiroso. Existem também lógicos que, por outro lado, defendem que o paradoxo do mentiroso prova a trivialidade da lógica clássica e argumentam a favor de lógicas não clássicas, como, por exemplo, lógicas polivalentes. Novamente, essas soluções não são viáveis, visto não resolverem outras versões do paradoxo do mentiroso.

Neste ensaio procuramos argumentar a favor de uma solução a partir da lógica clássica, concluindo que o paradoxo do mentiroso resulta de fórmulas linguísticas sem sentido. O nosso principal objetivo será resolver o paradoxo do mentiroso, nas suas diferentes versões, sem, ao mesmo tempo, proibir fórmulas consensualmente portadoras de sentido.

continua

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