Bússola Estudantil

Jornal escolar da Escola Secundária de Loulé

Palestra “Hannah Arendt e a banalidade do mal” – 23 de janeiro de 2023 – 14.20 h -16.10 h

Autor: Tulio Bertorini

Autor: Helder Lourenço – Professor de Filosofia, Departamento de Ciências sociais e Humanas (410)

Celebração do Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto (27 de janeiro).

(Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto – dia da libertação do Campo de Concentração de Auschwitz-Birkenau em 27 de janeiro de 1945 – Resolução 60/7 da 42.ª Sessão Plenária da Assembleia Geral das Nações Unidas de 1 de novembro de 2005).

Autor desconhecido

Hannah Arendt (1906-1975) foi uma filósofa alemã e norte-americana de origem judaica que procurou compreender de que modo foi possível acontecer o Holocausto e sobretudo o mal que o gerou.

Hannah Arendt tornou-se refugiada étnica, cultural e política em resultado da ascensão na Europa dos regimes totalitários, opressores dos direitos humanos, das décadas de 1920, 1930 e 1940 do século XX.

Dada a sua origem judaica e o seu pensamento livre, perseguida pelo regime nacional-socialista alemão, que ascendeu ao poder em 1933, foi-lhe retirada a nacionalidade alemã. Tendo iniciado uma carreira académica brilhante, doutorada em Heidelberg em 1928 com uma dissertação sobre “O Conceito de Amor em Santo Agostinho”, foi-lhe negada, porém, a defesa de uma segunda dissertação, que lhe permitiria a agregação e o desenvolvimento de uma carreira universitária na Alemanha. Depois de presa pela polícia política durante 8 dias em 1933, refugiou-se em Paris, passando por Karlsbad (Checoslováquia), Génova (Itália) e Genebra (Suíça).

Com a ocupação de Paris pelas tropas do exército alemão em 1940, foi internada no campo de concentração de Gurs no sudoeste de França, do qual conseguiu fugir para Espanha e depois Portugal. Em maio de 1941, emigrou por via marítima de Lisboa para Nova Iorque, Estados Unidos da América, onde conseguiu trabalho em vários jornais e revistas. Alcançou a nacionalidade norte-americana em 1951. Em 1953, devido ao sucesso das suas publicações, consegue finalmente um lugar como professora universitária, embora precário e a prazo, no Brooklyn College de Nova Iorque, podendo dedicar-se de novo à carreira académica e à investigação.

Entre maio e junho de 1961, a seu pedido, Arendt escreveu uma série de reportagens, para a revista “The New Yorker”, de cobertura do julgamento de Adolf Eichmann em Jerusalém. Adolf Eichmann foi um dos principais responsáveis pela organização logística do Holocausto. Terminada a II Guerra Mundial na Europa em 8 de maio de 1945, conseguiu escapar aos julgamentos de alguns dos maiores criminosos de guerra em Nuremberga, fugindo para a Argentina, onde foi capturado pelos serviços secretos israelitas (Mossad) em Buenos Aires em 1960.

Autor anónimo, no entanto algumas fontes aponta o autor como sendo um oficial SS, Ernst Hoffmann ou Bernhard Walter

Adolf Eichmann (1906-1962) tinha sido um dos principais responsáveis pela construção dos campos de concentração e de extermínio em massa, criados na Alemanha como em quase todos os países ocupados, sobretudo na Polónia. Mas foi também um dos principais responsáveis pelo transporte e deportação de seres humanos em vagões de gado, da encomenda dos fornos crematórios e do gás para os matar, da sua escravização em massa em campos de trabalho para a produção de armamento, entre muitos outros produtos industriais e atividades laborais, assim como pelo aproveitamento industrial de restos humanos, antes e depois da cremação, ainda a possibilidade da realização de experiências médicas em seres humanos, sem quaisquer considerações éticas.

Um lema cínico era colocado no topo dos portões de entrada dos campos de concentração e extermínio e de muitas instalações penais: “Arbeit macht frei” (“O trabalho liberta” – do  inferno da vida de um condenado, pela sua condição étnica ou política ou de ser diferente, a condição de não-homem [“Unmensch”], a de não-ser-humano). Este lema foi colocado também nos portões de entrada do campo de concentração de Auschwitz. Outro lema utilizado na perseguição étnica, ideológica e política do regime que dominou a Alemanha entre 1933 e 1945, foi o de “Vernichtung durch Arbeit” (“Extermínio pelo trabalho”). Ainda um terceiro lema, também frequentemente utilizado como palavra de ordem ou em campos de concentração, era “Jedem das Seine” (literalmente, “A cada um o seu”, no sentido de “A cada um aquilo que merece”). Estes lemas dizem quase tudo sobre o que não devemos nem podemos aceitar, quando tratamos de seres humanos, seja em que circunstância for.

Da série de reportagens escritas para a revista “The New Yorker” em 1961, resultou um livro publicado com o título de “Eichmann em Jerusalém. Uma reportagem sobre a banalidade do mal” (1963) [Lisboa: Ed. Ítaca, 2021].  O que mais espantou Hannah Arendt durante o julgamento, foi encontrar em Adolf Eichmann não o ser demoníaco, horrendo e maldoso que os seus atos fariam prever e as suas vítimas sobreviventes sentiam ser, mas sim, na sua análise, um ser humano normal, um ser humano banal.

A banalidade do mal e da sua ascensão ao poder desenvolve-se da seguinte forma.

Primeiro passo: declara-se na sociedade um determinado grupo de indivíduos como não partilhando um conjunto de características humanas comuns a todas as pessoas.

Partindo de aspetos circunstanciais, que poderão ser a sua extrema pobreza, a cor da pele, a linha do rosto, do nariz ou das orelhas, a forma do cabelo, a cor dos olhos, a situação de uma minoria que professa outra fé ou culturalmente apresenta outras práticas sociais, declara-se esse conjunto de pessoas como não humanas.

Explora-se então, de modo sistemático e recorrente, não as semelhanças, mas as diferenças, para se desenvolver um discurso de ódio, repúdio e nojo pelo outro, sendo determinadas falhas de caráter e de personalidade atribuídas como típicas ou exclusivas de um determinado grupo étnico, político, social ou religioso.

Declara-se depois um conjunto de seres humanos como inumanos, não-humanos. Por isso, não devem também fazer parte do bem comum. Por conseguinte, não devem possuir também direitos de cidadania, direitos civis, nem ser titulares dos direitos que reservamos às pessoas enquanto seres jurídicos, como os direitos sociais, culturais e de propriedade, pois não serão pessoas, serão não-pessoas.

Ao instituir-se uma depreciação de características humanas nesse grupo, aproveitam-se aspetos caricaturais que os façam parecer-se com qualidades ou animais desprezíveis aos sentimentos culturais do grupo etnicamente dominante, como ratos, vampiros ou cobras, como aconteceu no caso dos judeus e dos povos eslavos, por parte dos nacionais-socialistas alemães.

A partir do momento em que se desligam as distinções entre certo e errado, entre bem e mal, na procura do bem, torna-se fácil uma distinção entre os bons (os humanos), e os maus (os inumanos ou não-humanos). É a consequência de, entre pessoas, se procurar estimular não aquilo que as aproxima, mas sim de se procurar exacerbar de forma exagerada aquilo que as separa.

Teremos criado então uma divisão nos indivíduos sociais, entre pessoas e não-pessoas. Até os mais cruéis dos torturadores ou assassinos se poderão sentir a partir de agora boas pessoas. Tratarão bem aqueles que podem considerar pessoas. Não estarão a agir mal quando maltratam, torturam, escravizam, exploram ou exterminam não-pessoas, pois não se trataria de pessoas, mas sim de outros seres, desprezíveis aos sentimentos humanos como certas espécies de animais.

Se não admitirmos uma noção universal de ser humano, em que possam caber todas as pessoas, sem exceção, então teremos concluído o primeiro passo para que se desenvolva a banalidade do mal, para que o mal se possa generalizar e tornar-se vulgar, em todas as pessoas sem exceção, mesmo nas que anseiam, desejam ou desejem vir a praticar o bem.

Se as decisões que tomamos na distinção entre certo e errado deixarem de ser racionais, desligando-se o pensamento crítico discursivo, orientando-se por sentimentos de medo, de aversão, de ódio, de nojo relativamente ao outro, não o identificando como humano, como pessoa, o resultado só poderão ser más decisões, não boas decisões.

Mesmo que de algum modo suceda inconscientemente, no entanto, porque se viola a dignidade de si mesmo ao violar-se a dignidade do outro, ao não o respeitar como ser moral, não seguindo a lei moral (como propõe Kant), não nos comportamos como seres morais.

Ao declarar-se como não-pessoa, como sub-humano ou infra-humano [“Untermensch”] um determinado grupo de seres humanos, realça-se falaciosamente diferenças insignificantes relativamente à maioria, ocultando-se intencionalmente as semelhanças.

Segundo passo: na tendência totalitária da obediência cega a um chefe ou a um conjunto de superiores hierárquicos, seja administrativamente, organicamente ou politicamente, se não refletirmos sobre o sentido ético, na distinção entre certo errado, das ordens que recebemos, cumprindo-as sem as questionarmos criticamente, estaremos apenas a promover e a potenciar exponencialmente o mal.

Na receção de ordens ou instruções, ao desligar-se a distinção entre certo e errado, entre o bem e o mal, o mal torna-se ainda mais banal, na medida em que deixamos de medir as consequências, o impacto ou o resultado das nossas decisões.

Estará dada a receita imparável para a desgraça total.

Assim se explica como foi possível desenvolver-se o mecanismo simples da banalidade do mal que permitiu a promoção e a realização do Holocausto. Da edificação de um regime totalitário, assente numa diferenciação étnica, rácica, de promoção do ódio sistemático de uma comunidade idealizada ao “outro” e ao cumprimento acrítico e cego de ordens sem as questionar.

Adolf Eichmann, aos olhos de Hannah Arendt, não era o monstro demoníaco que as suas incontáveis vítimas em tribunal testemunhavam ser. Era um ser humano banal, vulgar, comum, medíocre até.

Confirmou-se em tribunal que foi excelente pai de família, um bom amigo, um bom funcionário público, um eficaz gestor e administrador público e, no sentido de espírito de serviço público, até um bom cidadão, pois acreditava estar a fazer o melhor pelo bem comum. E que, quando confrontado com o horror documentado dos crimes e dos testemunhos horripilantes em tribunal das vítimas sobreviventes, afirmava ter-se limitado apenas a “cumprir ordens”. Às quais terá dado obediência e cumprimento apenas com eficácia de serviço. Porque essa seria também a sua função enquanto funcionário superior da máquina administrativa nacional-socialista do Estado alemão.

É mérito de Hannah Arendt evidenciar que este mecanismo é universal. Todos os seres humanos são capazes de produzir mal. Não é uma exclusividade nem de Eichmann nem do nacional-socialismo alemão, nem do povo alemão, nem apenas dos estados ou regimes totalitários. Os “Gulag” soviéticos de Estaline não ficam muito atrás dos “Konzentrationslager” alemães. A diferença está dada apenas pela sublimação étnica, racista, do totalitarismo nacional-socialista e da morte industrializada em massa, como uma fábrica: rápida, produtiva e eficaz.

Nos campos de concentração alemães, para além dos judeus, eram colocados todos os que pensavam diferente ou eram diferentes, também eles considerados não-pessoas, não-humanos: dos comunistas e sociais-democratas aos democratas-cristãos e humanistas cristãos, dos ciganos e homossexuais às minorias religiosas organizadas, como as Testemunhas de Jeová. A morte racionalizada e industrializada como pena foi implementada com eficácia, tornando-a produtiva através do extermínio pelo trabalho, até no aproveitamento dos restos mortais dos declarados não-humanos. Foram eliminados seres humanos como se de bestas de carga, porcos, vacas, carneiros ou sardinhas  se tratasse. Os seus restos mortais foram aproveitados como se de coisas nefastas e improdutivas, tornadas finalmente produtivas, pela morte rentabilizada, se tratasse.

Para Arendt, também as organizações judaicas não são desculpáveis, nem apenas exclusivamente vítimas. Também elas foram responsáveis na forma como se pôde disseminar e instalar progressivamente na Alemanha e na Europa dos anos 30 do século XX a banalidade do mal. Não agiram atempadamente e com espírito crítico na denúncia e na confrontação eficaz das posições totalitárias que negavam aos cidadãos de fé judaica direitos de cidadania. Pois procuraram, em muitas circunstâncias, negociar e aceitaram a imposição progressiva de restrições aos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. Por este motivo, Arendt colheu durante o resto da sua vida fortíssimas críticas negativas de associações judaicas, como se na conceção da banalidade do mal estivesse simplesmente a desculpar, como fortuito acaso, a ocorrência da barbárie do holocausto. Deste modo, demonstraram não conseguirem compreender o alcance universal da sua análise.

Na conceção da banalidade do mal, da necessidade de o ser humano agir como ser moral universal e da necessidade da aceitação da universalidade do juízo ético, para a combater, Arendt apoia-se na ética de Kant, em particular nas noções de dignidade do ser humano, de pessoa, de autonomia versus heteronomia, de boa vontade e da lei moral.

Palestra – dia 23 de janeiro – 14.20 h – 16.10 h

A palestra procurou assinalar o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto, instituído pela ONU em 2005, no dia da libertação do campo de concentração de Auschwitz-Birkenau em 27 de janeiro de 1945, prestando homenagem às vítimas e criando momentos de reflexão e debate para memória futura sobre motivos, causas e consequências deste horror.

Foi apresentada a conceção de Hannah Arendt sobre a banalidade do mal e evidenciado, de um modo simples, a partir da projeção de um excerto do filme “Hannah Arendt” (Margarethe von Trotta, 2012), como se pôde iniciar, desenvolver e inexoravelmente multiplicar o mal que conduziu ao Holocausto.

Apresentados os motivos apontadas por Hannah Arendt para o desenvolvimento da banalidade do mal, foi iniciado um debate com os participantes sobre a conceção de Arendt e serão convocadas as posições dos presentes sobre o que devemos fazer para evitar que o mal se torne banal em geral, sobretudo de modo a evitarmos que o horror do Holocausto possa voltar a ocorrer.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *