Concurso Literário Juvenil -2022
2.º classificado – Isaac Wright é a aluna Daniela Antunes do 11.º E
A sala verde musgo do escritório parecia tentar absorver toda a luz que entrava pela janela. As portadas deixavam os raios de sol entrar por entre os cortinados e pequenas partículas de pó pairavam por entre o silêncio de toda a sala, caindo lenta e maciamente sobre o chão de madeira. Por cima da lareira, trabalhada em mármore branco e madeira de mogno, o som impugnante do relógio de mantel quase que se sentia vibrar por entre as paredes, através dos assentos dos sofás, até baterem contra o peito.A única luz que entrava por entre o salão batia na tela de óleo seco, no alto da parede ao centro da sala, por cima do relógio. Tinha um ar de desgaste, como se o facto de ser contemplado o corroesse.- Raios, Filipe! És capaz de atirar a corda para baixo?! – resmungou uma voz do lado de fora. – Deixa de olhar para o raio do quadro por um segundo!- E tu és capaz de parar de me falar com esse temperamento, homem?! – exclamou Filipe, numa tentativa de soar muito correto, o riso a escapar-se aos soluços perante a frustração do amigo. – Acabamos de chegar, meu companheiro, relaxa!- Quem ainda está do lado de fora, sou eu, seu canalha! Que diabos… – Ben continuava a praguejar para si, enquanto Filipe enrolava com propósito a dita corda à volta dos seus pulsos, um pé contra a parede por baixo do largo peitoril da janela, outro para trás, para que conseguisse amparar o amigo, enquanto subisse todo o segundo andar.Quando chegou ao parapeito branco do janelão, agora coberto de lama da sola dos seus sapatos, Benjamim soltou um soluço e mais uma praga quando se atirou para o soalho da sala, o ombro esquerdo parecendo betão ao embater contra o sólido chão de madeira. Deixou-se ficar uns merecidos momentos, a respiração ainda lépida de ter andado a correr desvairadamente por entre os estábulos do casarão, onde se encontravam agora.- Porque tiraste a corda do gancho? – olhando para trás, depois de se levantar, Ben reparou no gancho de metal caído.
– Enquanto subia, senti-o frouxo duas vezes. Tu és mais pesado que eu. Não ia correr muito bem. – devolveu-lhe. Ben acenou em concordância, lançando-lhe um olhar sabedor e emitindo um som que indicava ter reparado no “mais pesado”, mas que Filipe escolhera ignorar.Esfregou as palmas das mãos, enquanto olhava para a sala à sua volta, com um sorriso no rosto. Virou-se, então, para o retrato afixado na parede, em frente à janela, onde Filipe tinha já os olhos postos – Vamos lá a isto, então. – disse Ben decidido. – Ele só te pediu este?…Filipe, pensativo e desconfortavelmente observador, não tirou os olhos da peça, respondendo: – Sim, foi só este.Os seus olhos castanhos, outrora doces, com laivos de boa-disposição, transformavam-se agora numa bola de vidro, translúcida e fria.
Benjamim e Filipe trabalhavam juntos desde pequenos e Ben nunca se habituara a tal coisa.
Filipe inspecionava o retrato. Os seus olhos seguiam as linhas refinadas das bordas da moldura dourada, os desenhos de trevos e folhas, até ao relevo alto que a separava subtilmente da pintura. As pinceladas de óleo emitiam cores garridas, os traços da face representada eram finos e leves, sob uma paisagem pacífica de um jardim verde, ao fundo.
– Fazes ideia de quem seja? – perguntou Ben, enquanto abria o saco de pano macio, onde levavam normalmente peças mais caras. – Tem ar de alguém importante para D. Marcus. No bom ou no mau sentido – riu.
– Não é que nos diga respeito, mas… – parou subitamente. Passos largos e confiantes atravessavam prego a fundo o que parecia um corredor, que muito provavelmente fazia ligação à sala onde estavam. Sabia que esta parte da casa era a menos povoada normalmente, quase como um anexo construído posteriormente, e por isso sem o objetivo social. Se se ouviam passos perto, seriam apanhados.
Filipe pegou no retrato o mais rápido que pôde, sem bater com os cantos em qualquer zona da parede. Ben abriu o saco generosamente, o desenrolar da ação parecendo quase que uma boca esfaimada engolindo de súbito todo o quadro. Trocaram os dois um olhar e Ben não perdeu tempo a tentar prender de volta a corda ao gancho. Filipe estava prestes a gritar-lhe, exclamando que não havia tempo para aquela armação toda! Ben virou-se, enfastiado, a pressão do momento subindo-lhe ao topo da cabeça, a pele negra enrugando-se na testa, prestes a gritar-lhe de volta, perguntando, exasperado, como tencionava então descer?!
O som dos passos parou. A voz de uma criada ouviu-se, abafada. Os dois calaram-se, o silêncio profundo e quase mórbido instalando-se uma vez mais na sala. Lembravam duas estátuas à frente da grande lareira, as partículas de pó agitadas em pequenos remoinhos no ar, à volta das suas pernas. No silêncio, Ben continuou a prender o gancho à corda, um olhar muito ofendido dirigido a Filipe. Desta vez, não houve reclamações por parte do amigo, que calado consentiu que tinham de se manter parados, mais valia utilizarem o tempo para algo útil. Mas como sabia que o gancho estavafrouxo, obrigaria Ben a descer primeiro. Riu para si mesmo.
– De que te ris? – sussurrou amargamente Ben, que se movia a passos largos para junto da janela, para que o soalho não estalasse.- Vais descer tu primeiro. Eu levo retrato. – retorquiu muito baixa e agressivamente Filipe, que pegava no pedaço de tecido emoldurado com as duas mãos, ignorando a pergunta de Ben. Prendeu os cintos grosseiros cosidos ao saco às suas costas, para que se pudesse mexer o mais livremente possível. Soltou um suspiro transtornado, gotas de suor a aparecerem na testa do esforço. – Isto é pesado como tudo! – exclamou para si.Ben sabia perfeitamente o porquê do sorriso. O que lhe trouxe também a lembrança de quase se estatelar no chão duas vezes pelo piso enlameado, enquanto Filipe seguia à sua frente às gargalhadas, ainda antes de chegarem ao casarão. Um motivo de real apreciação, para ver se não era desta que esganava o amigo de longa data.
Entretanto, os passos que se ouviram afastaram-se da sala outra vez, parecendo que percorriam de novo o corredor, de volta à interseção de portas que levavam ao casarão central. Ben prendeu o gancho ao parapeito da janela, lançando a corda para o lado de fora.- Eu vou descer e tu atiras-me o quadro a seguir. A queda é demasiado grande para saltarmos com ele, mas acho que é pequena o suficiente para manter uma trajetória reta, até eu o apanhar. – pensava enquanto dizia, preparando-se já para descer, uma das suas pernas esguias já do lado de fora. Assim que as suas botas pesadas bateram no solo de pedra, levantou os braços, para que Filipe deixasse cair o retrato.Quando se preparava para o deixar cair com cuidado, ouviu ao final do corredor passos exasperados, e uma voz grave e altiva: O quê?! – exclamou.
Outra mais fraca e menos segura de si defendia-se: Não sei como não o avisaram antes, Vossa Graça!… Aperceberam-se dos dois cavalos nos estábulos que não eram nossos… creio que pagaram ao homem para se manter calado! Subiram pela… – o homem continua a falar, as vozes abafadas cada vez mais claras e percetíveis. Os passos dos dois cada vez mais altos e pesados, o que vinha à frente claramente furioso.Filipe deixou cair o retrato, Ben apanhou-o no ar.- Corre, Benjamim!… Eu desço e apanho-te à entrada! – exclamou Filipe, preparando-se para descer, ainda no cimo do segundo piso.- Ele sabe, Diabos! O Duque sabe! – gritou.
Viu Ben abrir muito os seus olhos castanhos, apercebendo-se da situação. Os seus pés viraram-se e Ben correu para trás da parede de tijolos, onde se encontravam os aposentos dos criados, zonas de agricultura, armazéns e os estábulos. Quando os pés de Filipe se encontravam já apoiados por baixo da janela, do lado de fora da grande parede do casarão, a porta da sala abriu-se de rompante. A cara incrédula e furiosa do Duque de Vitória abria-se perante ele, o fato de general vermelho garrido de repente visível à luz da janela aberta, contrastando agressivamente com os tons pacatos e escuros do escritório de madeiras e verdes.
Antes que pudesse dar um pulo para trás, para que descesse num ímpeto os dois andares, viu Wellington a correr para a janela:- Filipe! Seu desnaturado! Eu sabia que eras tu, desgraçado!… Sem vergonha! – O Duque gritava, mas Filipe já só ouvia sílabas do que dizia, aproximando-se do chão num instante. Desatou a correr para os estábulos, deixando a corda pendurada na janela, com um sorriso triunfante no rosto.Correu o mais rápido que pôde, avistando Benjamim ao pé de umas carroças com os dois cavalos, o retrato preso ao seu:- Pensei que não viesses!… Anda, sobe! – exclamava Benjamim.Galoparam os dois pelo piso de gravilha, gritos de guerra ouviam-se ao fundo, a artilharia do general a passar de rompante pelos portões da residência, prontos para os encurralar e atacar. Ben ria, mais do que familiar com estas circunstâncias:- Não nos podemos queixar, não é assim? – continuava, rindo – Pelo menos fazem o favor de serem sempre os mesmos tansos e de nos facilitarem o trabalho!Filipe riu também, o seu sorriso aberto apaziguando a tensão do momento de há dois minutos, quando se encontravam a tentar escapar daquela sala. Olhou para trás, certificando-se de que o retrato continuava preso ao seu cavalo, atrás de si. Tomaram duas direitas e uma esquerda, sempre a grande velocidade, sabendo que não se atreveriam a persegui-los num bairro social cheio, como era sempre a praça da sua pequena cidade.Quando acharam ter a possibilidade de parar, deixaram os seus cavalos perto do parque onde pediam sempre para que os encontrassem, quando eram contratados para este tipo de trabalhos. Filipe saltou da sua cela, preocupando-se de imediato em secar as suas mãos molhadas da lama que entretanto saltara durante a corrida. Retirou o retrato do saco, verificando se estava tudo incólume. Ben abraçou-se ao amigo, caminhando os dois a passo lento pelas ruas, até chegar ao sítio onde estaria D. Marcus, à espera do retrato que pedira.Filipe inspecionava uma vez mais a pintura delicada, deliciado com os traços profissionais e esbeltos da figura representada. Sentiu uma pontada de ciúme no peito largo, esperando um dia ter a possibilidade de ter obras daquele calibre em casa, porque podia escolher fazê-lo. De repente, pára a meio do passeio, assustando Ben que, muito bem-disposto a seu lado, agora mostrava uma expressão preocupada e confusa.- Filipe? – perguntou.Os olhos do amigo abriram-se o quanto mais podiam. Fixaram-se num ponto ao canto da pintura, um canto minúsculo, impercetível. Num maldito canto!… Não era possível!… Olhara para imagens suas montes de vezes, desenhos, ouvira a sua explicação tantas vezes quanto se podia recordar. D. Marcus desejava aquele retrato mais do que comer, ou respirar. Portanto, a quantia que receberiam por ele não era, claro está, modesta. Era imperativo que a recuperassem, que a trouxessem de volta, inequivocamente. E Filipe não era parvo. Tinha memória fotográfica, memória auditiva, todos os tipos de memória, raios! Aquilo… aquele simbolo… Olhou aterrorizado para Ben. – Filipe, ouve, amigo – disse Ben, o nervoso subindo e trancando-lhe a garganta como uma corda ao seu pescoço – eu não sei o que se passa, mas não disparates, homem! Se há algo de errado, vais ter de me dizer! – exclamou, então.Filipe permaneceu um momento em completo silêncio.
– É falsa, Ben – disse por fim. A pausa que se ouviu pareceu a paragem dos corações de ambos, ao mesmo tempo. Deixaram-se ficar, assim, a olhar inabalavelmente um para o outro. E repetiu, como que a confirmação do inegável:
– O retrato é falso.
Isaac Wright