Concurso Literário Juvenil -2022
3.º classificado – Jahr é a aluna Ema Sousa do 11.º J.
Verão
Tudo isto para quê? Todo este calor, este sol? Para a ideia de verão, venderam-me felicidade. No entanto, aqui estou eu, deitada na minha cama, a fingir que estou a dormir para que ninguém me venha incomodar.Debato-me sobre a lista de coisas que tenho para fazer, mas não mexo nem um dedo para concluir nenhuma delas. No final de contas, é verão, tenho três meses para arrumar o quarto, tenho três meses para sair de casa, tenho três meses para ser feliz. Por isso, fico na cama. De qualquer maneira, os cobertores são demasiado pesados para os levantar.- Inscrevi-te no concurso de que falamos a semana passada! – O meu pai entrou no quarto quase sem fôlego – E comprei-te uma tela para começares a trabalhar.- Pai, eu disse-te que não queria pintar. – Viro-me para ele – Para além do mais, essa tela é enorme.- Quanto maior, melhor. – Ele sorriu e sentou-se na cama. – Pelo menos, tenta. Pode ser que te alegre um pouco. Ele passa a mão pelo meu cabelo antes de se levantar – Vou tratar do almoço.Quando ele saiu do meu quarto, suspirei de alívio, ou stress, não sei. Ele tenta, eu sei que tenta, eu só não queria voltar a pintar, especialmente um retrato.
Outono
Infelizmente, a escola tem de começar outra vez. As aulas, os horários, os prazos, os testes e mil e uma desculpas para não aparecer em nenhum destes. Voltei a encontrar-me com a minha amiga. Ela diz que este ano preciso de levar as coisas com calma, pois a última coisa que queremos são as férias de branco outra vez.- Como foi o dia? – O meu pai entra no meu quarto. – A desembrulhar a tela?- Estou a levar as coisas com calma. – Sorri.- O que planeias fazer? – Ele senta-se na cama, do lado posto do quarto.
– Bom, o tema é “O retrato”. – Suspirei. – Então, vou pintar “O retrato”.
Fiquei na mesma. Ele ri.- Não queres levar a tela logo para o estúdio?
– Ainda não, talvez mais tarde.
Ponderei o que poderia pintar na tela. Que cores poderiam cobrir o branco, o vazio. Eu odeio branco, odeio férias, precisa de cor, precisa de alma, a minha alma. Por mais ridículo que possa parecer, esta tela precisa da minha alma, de tudo o que eu puder dar. Tudo de mim que eu lhe possa passar, tudo de mim, até que o meu físico não seja nada mais do que uma cor a tapar o branco, as férias, o outro lado. Não serei mais que tinta numa superfície plana.
Semanas depois, só uma fina camada de carvão se entranha nas fibras de algodão da tela. Tenho tudo desenhado, mas a perfeição está longe de ser alcançada, se alguma vez é possível lá chegar.- Pronta para a escola? – O meu pai entra no quarto – De pijama? – Ele suspirou. – Dormiste sequer?- Não. Distraí-me com as horas… – Olhei para a janela de onde notava os raios de sol definidos pelo pó e o chilrear dos pássaros. – Dá-me cinco minutos.
-Tudo bem. Esta tarde vou levar o quadro para o estúdio, pois precisas de descansar.
Levar este quadro para longe de mim seria como arrancar parte de mim, seria capaz de lançar todo o meu físico à terra. Vesti-me num minuto: calças e uma blusa com o meu casaco preto. Não saio de casa sem este casaco. Ele colocou a chave na ignição.
– Tens a certeza de que estás bem?
– Sim, estou a levar tudo com calma, as notas estão razoáveis, começo os testes na próxima semana. – Se precisares, fala comigo, por favor.- Eu sei, não te preocupes. – Sei que o assustei, sei mesmo, mas estou bem, está tudo bem.
Inverno
Com o passar dos dias, tudo fica mais turvo, ao pôr-do-sol tudo começa e, ao nascer, tenho de sair da cama e viver. A escola começa lentamente a tornar-se insuportável: todas as aulas, todos os trabalhos e testes, todas as perguntas e piadas. Faltar a uma aula ou duas não magoaria. Era bom para descansar a meio do dia.- Boa noite! – Ouço o meu pai da cozinha e, com esforço, desloco-me ao seu encontro.- Como foi a escola?- Normal.
– Ajudas-me com o jantar? – Ele pergunta-me e eu aceno jogando as mãos aos sacos. – Ligaram-me da escola. Ele informa-me e o meu sangue congela, pois não era suposto ele saber.
– O que queriam? – Faço-me desentendida.
– Porque é que andas a faltar outra vez?
Esta pequena pergunta criou uma discussão, outra vez. Sinto que, quanto mais ele tenta ajudar, pior faz. Nunca aceita as minhas respostas, anda sempre à procura de uma razão, uma explicação, que justifique tudo isto.
– A conversa ainda não acabou! – Ele gritou para o vazio quando me dirigi para as escadas.Fiquei parada no corredor por uns momentos, estava silencioso. Geralmente, o escuro deixava-me pensar, mas hoje só fazia o meu sangue fervilhar. Entro no estúdio e ligo a luz. Era tudo meu: o cabelo, os olhos, os lábios. Era tudo meu, pele lisa e livre de imperfeições. Não era eu. Tinha tudo o que eu tenho, mas não era eu, eu não sou perfeita, eu tenho falhas e eu tenho defeitos. Pego na tinta preta e, sem me preocupar com pincéis, espalho-a pela tela. Esta sou eu. Confusão, defeitos a coexistir com a beleza que tanto tanto trabalhei para atingir. Agora, sim, tudo a sair, como se a raiva transbordasse do meu corpo para a tela, sob a forma de tinta preta. A minha alma, tudo o que eu pude dar de mim.
Primavera
O tempo começava a aquecer, o sol brilhava com mais força e eu lutava para ver estas terras por mais uns minutos a cada dia, ou pelo menos é isso que o meu pai realça todos os dias. Passo a maior parte do meu tempo livre no estúdio. Preciso de acabar este retrato. Tenho um mês para o final do prazo do concurso. Embora desperdice a maior parte das horas a olhar para a tela, a analisar cada pincelada e a criticar cada milímetro como se fosse o meu corpo. Em vez de continuar, ainda assim, sinto que estou perto do fim. Em breve, estará tudo acabado.Tenho passado mais tempo por semana com a minha amiga e temos falado. Não que seja grande ajuda, mas, se estar com ela e comer as gomas brancas faz o meu pai feliz, então porque não lhe dar essa satisfação?
VerãoNão consigo acompanhar a escola, sinceramente desisti, mas, pelo menos, o retrato está quase acabado. Já nem sei que dia é, não sei que horas são, o meu pai tem andado muito ao telemóvel. Ouvi-o falar das férias de branco com a minha amiga, assumo que estejam preocupados.Ao chegar a casa, dirijo-me para o meu quarto e ponho o vestido branco que pendurei de manhã e vou para o estúdio. Pego numa das tintas prateadas e espalho pelas minhas mãos e braços e arrasto as minhas mãos pelos olhos da minha alma, pintados na mesma madrugada. Sinto a minha visão desfocar. Acabei, este é o fim. Dei tudo o que tinha a dar. A alma é o retrato. Pintei a minha outra metade, como os poetas diriam. Pintei a outra metade do meu físico e ofereci-lhe toda a minha alma quando tudo ficou escuro.
Jahr

