O som do silencio

Concurso literário juvenil - biblioteca escolar
1.º Prémio – Laura Orge dos Santos, 10.º K
“Sabem, quando acordam a meio da noite com vontade de ir à casa de banho? Para mim, isso é a segunda pior coisa do mundo. A primeira, é precisar de ligar os dados móveis e ver que já os esgotei, quando a internet do sítio onde me encontro é demasiado fraca.
Gostando ou não, tomo coragem, calço as pantufas de cor creme, assim como o meu pijama, o mais cuidadosamente possível, e dirijo-me à porta. Tento fazer o mínimo de barulho que consigo, sendo que partilho o quarto com a minha irmã e, digamos que tê-la chateada ocupa a terceira posição de coisas que prefiro evitar.
Percorro o corredor em pezinhos de lã, o mesmo material que levo nos pés. O caminho parece infinito e torna-se turbulento assim que o meu cão acorda. Por sorte não rosna (o que costuma fazer quando uso estas pantufas), mas, inconvenientemente, decide agarrar-se a uma delas. Boa, não um, mas dois corpos para arrastar. É nestes momentos que agradeço por ter um Chihuahua.
Coloco a mão na maçaneta, finalmente, e não respiro até estar completamente dentro do cubículo a que chamamos de casa de banho. Fico quase tão pálida como a criatura a meus pés. Rezo para que os meus pais não tenham ouvido o Bola de Neve a ganir. Não era minha intenção pisar-lhe a cauda, mas, ao olhar para o espelho, assusto-me com o que encontro e recuo, pisando-o. Não sei porque o fiz, já esperava ver estes fios acastanhados espetados e com mais volume que o desejado.
Enquanto faço o que tenho a fazer, tiro o telemóvel de emergência da gaveta do armário das toalhas. Esta preciosidade foi inventada por mim e pela minha irmã, para quando ficamos de castigo sem aparelhos ou quando todos os outros não têm bateria e somos demasiado preguiçosas para os ligar à corrente e esperar que estejam carregados. Assim sendo, este telemóvel não sai daqui para lado nenhum, para que quando uma de nós precisar, saiba sempre onde se encontra.
O telemóvel seria reconhecido em qualquer lugar (isto, por nós as duas, sendo que mais ninguém sabe da sua existência). Tem uma capa repleta de brilhantes coloridos e as marcas de uso são evidentes, tendo já uns 3 anos. Comprámo-lo com a junção das gorjetas do trabalho da Rosa e com as semanadas que poupei durante uns meses. Agradeço ao meu “eu” de há três anos por tê-lo feito, caso contrário, teria tornado o meu presente bem mais deprimente. Acho que qualquer um preferia jogar ao invés de ter de se distrair lendo os rótulos de shampoo.
Estando despachada, pouso o telemóvel no lavatório, o que não foi uma decisão inteligente. Ao dirigir o braço para o mecanismo do autoclismo, toco no telemóvel que estava à beira do móvel, fazendo com que este caia sanita adentro, o que resulta num splash. Com o barulho, o meu cão começa a ladrar. Enervo-me e empurro o mecanismo, fazendo a água rodopiar. Até tento alcançar o telemóvel, mas sou puxada, redopiando também.
Sinto-me a rodar por mais uns momentos, vendo branco ao meu redor até aterrar num suposto chão. Mal sinto a superfície, vejo o branco à minha frente encher-se de gente. Olho para baixo, e o que era um solo branco torna-se relva, repleto de árvores e plantas. O que pareciam paredes brancas, tornam-se num azulão, decorado por um sol gigante e brilhante, e ao fundo consigo identificar casas e outras infraestruturas. O meu coração acelera, não consigo ouvir nada. Com desespero, tento comunicar com as pessoas. Umas acenam-me, outras aproximam-se de mim fazendo sinais que não compreendo. Não sei o que fazer. Experimento falar, mas ninguém me ouve. Nem eu oiço a minha própria voz.
Começo a sentir falta de alguma coisa, para além do som, e encontro-a quando dirijo o olhar para cima. Oh não! Vejo o Bola de Neve a cair do céu, girando, assim como eu havia chegado a este lugar. Estico os braços, instintivamente e, felizmente, ele aterra neles. Vejo pelo focinho que tenta ladrar, também não consegue. Bem, pelo menos algo de positivo no meio de tanta desgraça.
Pouso o ser vivo no chão, e sinto a minha mão ser agarrada, agressivamente, por outra. Estou a ser arrastada por um miúdo. Devia ter uns seis anos. O sorriso desdentado denunciava-o, assim como as suas roupas cobertas de lama.
Momentos depois, ele pára em frente a uma toalha de piquenique. Faz um sinal com a mão para que me sente, e obedeço. Olho para baixo, e vejo que sobre as minhas pernas cruzadas ele colocou um bloco de pintar. Procuro o menino, percebo que se sentou, mesmo à minha frente, e que chamou outras crianças para perto de nós.
A nossa frente, tínhamos lápis e canetas de todas as cores, mas eu era a única com desenhos para as utilizar. Todos olharam para mim, e, mesmo sem palavras, soube o que me pediam. Distribuí os desenhos por todos, até sobrar apenas um, para mim. Estranhei a forma do desenho. Todas as outras crianças tinham paisagens, animais e brinquedos para colorir, enquanto eu tinha a simples forma de um telemóvel.
Realmente, não havia muito para pintar ali. O telemóvel ou era preto, ou era branco, e de branco já bastava a folha. Decidi ser diferente. Procurei com os olhos e com as mãos uma caneta verde, mas, quando ia para a agarrar, já ela estava na mao do menino sem os dentes da frente.
Observei-o enquanto pintava, e algo me chamou a atenção. Ele pintava o sol de verde. De verde? E assim que levantou a cabeça e me encarou, foi como se o sol que pintava me tivesse enviado um dos seus raios. Eu conhecia aquele miúdo, e todos os outros. Aquelas criaturinhas eram alunos da minha mãe.
Estudar na mesma escola onde a minha mãe trabalha é cansativo, por vezes. As minhas aulas acabam sempre muito mais cedo que o horário do fecho da parte primária, há sempre algum miúdo que fica até mais tarde. Assim, às quatro horas, lá vou eu para a selva de gritos e correrias. Normalmente, sento-me num canto, distraio-me com o telemóvel. Não gosto lá muito de crianças estridentes e peganhentas, mas de facto, recordo-me de ter visto o Augusto a pintar o sol de verde, e de me ter rido com isso. O nome dele era o único que me tinha dado ao trabalho de decorar.
Dar atenção a crianças não é a minha atividade preferida, mas decidi não pintar e ficar a observá-los, invés. Os olhos deles brilhavam com a quantidade de cores que tinham por onde escolher. Alguns já estavam com a roupa, cara e até os braços todos sarapintados, mas isso parecia diverti-los. As crianças não tinham problemas em partilhar o que tinham, tanto os marcadores como os desenhos. Talvez estes miúdos não fossem tão irritantes como eu pensava.
Olho em meu redor. Conheço todas aquelas pessoas. Estão aqui desde familiares a pessoas que posso ter visto apenas uma vez. Mesmo assim, sinto-me estranha, misturada entre desconhecidos.
No chão, uma laranja vem a rolar na minha direção. Pergunto-me de onde terá aparecido, e com isso, encontro a minha avó, próxima de mim, a apanhar laranjas de uma árvore, e a colocá-las num cesto. Vou ao seu encontro e ajudo-a. Quando a árvore fica finalmente despida de fruta, ela estica o braço, oferecendo-me uma delas. Começo a descascá-la, mas a minha avó tira-ma da mão. Ela divide a laranja com um corte ao meio, fazendo com que as duas metades se despeguem mais rapidamente do que esfarelar toda a casca, aos poucos.
Assim que acabamos de comer, ela tira do bolso do avental um desenho de nós as duas a apanharmos laranjas. Reconheci aqueles bonecos de palito deformados, e as letras T, E, R, E, S e A, todas tortas e tremidas no canto inferior direito. Era eu quem tinha feito aquele desenho, sabe-se lá há quanto tempo.
Costumo ir muito para a casa da minha avó, mas confesso que não me recordo da última vez que conversámos verdadeiramente, fora a conversa de circunstancia que temos, até a internet lenta da casa dela funcionar, para que veja um filme no meu computador.
Juntas, demos uma volta por aquele lugar. Convivi com pessoas que eu própria já nem me lembrava que tinha alguma conexão. Tive milhares de conversas e risos silenciosos. Não sabia como tinha chegado àquele lugar, naquela manhã silenciosa, que me falava de alegria e simplicidade, mas sabia que não queria ir embora.
O enorme e quente sol não se movera durante todo aquele tempo. Pareciam ter passado dias, de tanto que fiz e conheci.
Estava num banco de jardim, perto da explicadora que tivera há alguns anos. Passava a explicação de fones nos ouvidos, não conhecia muito sobre ela e nem queria saber da matéria. Num papel, ela acabara de me explicar equações (que passara agora a adorar), quando um caminho branco luminoso apareceu diante os meus olhos. Aceneilhe, confusa, e segui o caminho. Depois de muito caminhar, uma parede com um telemóvel integrado apareceu na minha frente. Hesitei. Não sabia o que aconteceria se lhe tocasse. Não sabia o que aconteceria a todos estes momentos, se iria viver algo assim tão libertador e quentinho novamente. O Bola de Neve estava a meus pés, olhei para ele. Ele replicou com um olhar perdido, e segui a minha intuição. Que pena que tudo isto acabou, quando caí na tentação.
Toquei naquele telemóvel. O que eu daria para poder voltar atrás naquela decisão.
Bastou um toque para que toda aquela harmonia se transformasse em preto. Um borrão preto. Esfreguei os olhos. Apareceram todas aquelas pessoas com quem tinha estado anteriormente, mas, embora estivessem comigo fisicamente, elas não estavam lá realmente, não como dantes. Esta imagem já se aproximava mais com a realidade de que me lembrava.
Examinei todos com o olhar. Os miúdos sentados na toalha de piquenique, tinham todos um tablet nas mãos. A minha avó, sentada debaixo da laranjeira, com um computador nas pernas, que lhe iluminava a cara. Os meus pais, os meus primos, os meus amigos, os meus professores. Toda a gente estava a olhar para um ecrã.
Já não havia silêncio. Eu conseguia ouvir tudo o que ouviam. Os sons dos vídeos, jogos e dos risos e outros grunhidos de frustração que emitiam para os ecrãs.
Ninguém olhava para ninguém. O som era irrelevante. Não havia conexão, apenas com o virtual.
Fui-me aproximando deles, e entendi que me ouviam. Mas será que me estavam a escutar? As palavras eram inúteis. A atenção deles estava totalmente concentrada para algo que não conseguia comunicar com eles. Não da forma que eu me tinha habituado, àqueles breves momentos que tinha passado com eles.
Gritei e chorei. Esfreguei os olhos para que acordasse daquele pesadelo. Nada resultava, até que me virei para trás. Vi um espelho gigante. Mirei-o profundamente, e comecei a refletir sobre todos os momentos em que estivera também a olhar para um ecrã.
Tudo fazia sentido agora. O que estava a ver no espelho, eram aquelas interações que tivéramos anteriormente. Sem palavras, mas não em silêncio, porque, na verdade, conseguíamos ouvir o coração uns dos outros. O espelho estava assim a mostrar-me tudo o que poderia ter acontecido, caso tivesse sempre escolhido viver o real. Eu sabia o que tinha a fazer. Agarrei no telemóvel, que tinha estado o tempo todo na minha mão, e atirei-o para o chão. Pisei-o, destrui-o completamente, e…
– Teresa, acorda! Tens de ir para a escola. – A Rosa estava ainda na cama e eu levantei-me a suar e a respirar demasiado rápido, como se tivesse corrido uma maratona.
Dirigi-me à casa de banho e a Rosa seguiu-me. Encostou-se à porta e disse:
– Olha! Não te esqueças de pôr a nossa relíquia a carregar. – E piscou-me o olho. Percorri o armário das toalhas com as mãos. Encontrei o telemóvel de emergência. Joguei-o para o chão. Olhei para ela. E esmaguei-o em mil pedaços.
– O QUE ESTÁS A FAZER? – Questionou furiosa.
– A libertar-me.
Dava agora início à primeira de muitas manhãs silenciosas.”